terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O que os franceses pensam de Tropa de Elite

Matéria publicada no Le Monde sobre o Festival de Berlin:

19/02/2008
Premiação controvertida reflete seleção confusa do Festival de Berlim

Thomas Sotinel
Enviado especial a Berlim


Ao atribuir o Urso de Ouro ao filme brasileiro "Tropa de Elite", o júri da 58ª edição da Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim, presidida pelo cineasta Costa-Gavras, tomou partido de maneira espetacular na polêmica alimentada ao longo dos dez dias do festival. De maneira geral, salvo algumas exceções - como os ótimos "There Will Be Blood" ("Sangue Negro"), de Paul Thomas Anderson, e "Happy-Go-Lucky", a encantadora comédia de Mike Leigh -, os filmes selecionados para a competição provocaram profundas divisões entre os críticos e no público (a Berlinale acolhe todos os anos 200.000 espectadores que assistem às projeções).

Um imenso sucesso de público no Brasil, "Tropa de Elite", dirigido por José Padilha, encena o trabalho mortífero do Bope, uma unidade da polícia brasileira cujos integrantes vestem uniformes pretos adornados por uma caveira; um batalhão de operações especiais equipado com armas de guerra, que luta contra o tráfico de drogas nas favelas do Rio, recorrendo à tortura e às execuções extrajudiciárias.

Afluência de roqueiros veteranos

Uma vez que os outros grupos humanos que são encenados por Padilha - policiais corruptos, traficantes sanguinários e estudantes bem-intencionados - são, no melhor dos casos, ridículos, e no pior, repugnantes, o filme só reconhece o estatuto de personagem de maneira plena e inteira apenas aos policiais do Bope, dos quais ele sublinha os tormentos morais. A personagem central de "Tropa de Elite", o capitão Nascimento (Wagner Moura) tenta obter a sua transferência e vê o seu casamento se desfazer. Estas circunstâncias atenuantes foram suficientes para o júri da Berlinale.

Além do mais, este mesmo júri preferiu o ator iraniano Reza Naji, estrela do filme "Avaze gonjeshk-ha" (o canto dos pardais), de Majid Majidi, à performance fora do comum de Daniel Day-Lewis em "Sangue Negro", de Paul Thomas Anderson, um filme que, na opinião de vários críticos, superava de longe o restante de uma seleção disparatada. Paul Thomas Anderson recebeu o Urso de Prata de melhor diretor por esta reconstituição histórica, que retrata a vida de um magnata do petróleo durante os primeiros anos do século 20. Neste filme, Daniel Day-Lewis encarna um prospector que não consegue saber se é um gênio perverso ou um homem que se diferencia apenas pela sua sede de dinheiro e sua energia. Johnny Greenwood (mais conhecido por ser o guitarrista do grupo Radiohead) ganhou, por sua vez, o prêmio da melhor contribuição artística pela dissonante trilha sonora que acompanha as imagens de "Sangue Negro".

O prêmio do júri foi outorgado a um outro filme controvertido, o documentário "Standard Operating Procedure", no qual o americano Errol Morris retoma a investigação sobre os maus-tratos infligidos por soldados americanos aos detentos da prisão de Abu Ghraib. Sally Hawkins recebeu o prêmio de interpretação feminina pelo papel de Poppy, a professora de curso primário em "Happy-Go-Lucky".

Frustração dos freqüentadores do festival

Mais do que por causa da sua premiação, que reflete bem a incoerência da seleção, esta edição de 2008 será lembrada pela afluência dos roqueiros veteranos que a caracterizou. Depois das participações dos Rolling Stones, de Neil Young e Patti Smith, Madonna, que apresentou o seu primeiro longa-metragem como cineasta, "Filth and Wisdom", mais se parecia com uma estreante.

E os filmes que despertaram a maior curiosidade ainda nem existem. Durante as sessões do European Film Market, a vertente comercial da Berlinale, a apresentação das primeiras imagens da biografia de Che Guevara por Steven Soderbergh (um filme do qual a sociedade francesa Wild Bunch é a principal produtora) precedeu as negociações em torno do financiamento de "Coco". Este filme sobre a juventude da estilista Coco Chanel (um papel que deverá ser confiado a Audrey Tautou, de "Amélie Poulain"), está sendo preparado atualmente pela cineasta Anne Fontaine.

Nem a presença das estrelas do rock, nem os negócios promissores foram suficientes para esconder a frustração de muitos freqüentadores do festival. É verdade, em meio à quantidade de filmes que foram apresentados nas diferentes sessões do festival - cerca de 400 -, alguns deles conseguiram proporcionar alguns bons motivos de satisfação. Foi o caso do impressionante "United Red Army", do veterano cineasta japonês Koji Wakamatsu, projetado na seção Panorama, e do excelente "Noite e Dia", que o coreano Hong Sang-soo apresentou na mostra competitiva.

Estes filmes ofereceram momentos excepcionais, mas, ainda assim, foi pouco se considerarmos a massa de filmes sem grande brilho que constituíram o ordinário do festival. Um grande número destas criações eram co-produções alemãs, como "Black Ice", um melodrama finlandês de Petri Kotwica, e "Fireflies in The Garden", um melodrama americano de Dennis Lee co-produzido pela filial da grande produtora alemã Senator, ambos selecionados para a competição.

Tradução: Jean-Yves de Neufville